Reportagem produzida para trabalho da Universidade Presbiteriana Mackenzie, juntamente com as também alunas Dominique Santana e Letícia Garcia.
Química. Foi com essa palavra que Malu, uma jornalista de 45 anos, definiu o processo de adoção. "A adoção é como uma química, tem que bater dos dois lados", completa. Malu entrou na fila da adoção depois que ela e seu marido, Joachim Kern, um alemão de 42 anos, tentaram engravidar naturalmente e por meio de inseminação artificial.
Hoje com três filhas adotivas, que são irmãs de sangue, Malu conta que nunca foi acostumada com casa cheia. Filha única, ela não tinha nem a possibilidade de ser tia, então decidiu que havia chegado a hora de ser mãe. Esse processo de paixão que a família está passando por aproximadamente um ano e meio é a situação de lares que abraçaram a responsabilidade desafiadora, mas gratificante, de adotar uma criança, ou mais de uma.
A realidade do Brasil é baseada em grupos de crianças, irmãos que têm uma convivência muito grande e praticamente impossível de quebrar. Esse é um dos principais fatores para a desistência na adoção. Quando os casais recebem a notícia de que o perfil de filho que combinou com o deles não está sozinho, se assustam, não se sentem preparados para o tamanho do comprometimento, e muitas vezes negam a proposta.
Em 25 de setembro de 2018, o número de pretendentes à adoção registrados no Conselho Nacional de Justiça era de 44.575 pessoas, e disponíveis a adotar de fato somavam pouco mais de 41 mil. No entanto, o número de crianças disponíveis para serem adotadas, ou seja, prontas para saírem do abrigo e estabelecerem-se em seus potenciais lares, no mesmo período, era 4.495. Dentro do sistema, estão registradas 9 mil crianças.
Em relação aos irmãos, 63% das crianças disponíveis possuem irmãos, porém apenas 35% dos pretendentes aceitam adotar mais de uma criança de uma única vez.
A idade também é um tópico relevante aos pretendentes. Segundo o CNJ, apenas 15% deles aceitam crianças de até 5 anos. Porém, apenas 5% dos infantes disponíveis têm esse perfil. Em São Paulo, 90% das crianças cadastradas para adoção tem idade superior a oito anos.
O caso da Malu foi completamente oposto dos usuais citados acima. Ela queria adotar uma criança mais velha. "A questão da adoção tardia é muito clara na minha cabeça, eu gostaria de já adotar uma criança maiorzinha, para que eu pudesse ver quem está ali", completa. E além disso, quando recebeu a ligação da assistente social, viu uma oportunidade no contexto. "A questão dos irmãos é que, após seis anos, a gente achou que tinha que ceder em alguma coisa e quando nos ligaram com o grupo de crianças, eu pensei 'opa'". Ela brinca, inclusive, que qualquer pessoa normal sairia correndo de uma situação como essa, mas Malu decidiu arriscar e tentar a química.
Camila Cunha, de 21 anos, conta o outro lado da moeda. Aos cinco anos foi adotada oficialmente pela servidora pública Silvana Carneiro da Cunha. Mãe solteira, Silvana levou Camila aos quatro anos para sua casa, depois de conhecê-la através de uma amiga que se disponibilizava a sair aos fins de semana com algumas crianças do orfanato em que estava abrigada.
A paixão entre mãe e filha virou refém de um processo burocrático que, além de lento e pouco ágil, ainda desconfia de alguns perfis de pretendentes, uma vez que Silvana seria uma mãe solteira. Com isso, Camila só se tornou oficialmente filha de Silvana, e recebeu seu sobrenome, um ano e meio depois de ter ido para sua casa.
As memórias e o desenvolvimento de uma criança que é adotada mais tardiamente é interessante de salientar em um estudo sobre esse tipo de formação de família. “Eu acredito que o único momento que me marcou mesmo foi na minha primeira festa de aniversário, que nunca tive algo assim. E foi aí que descobri como era ter uma família”, relembra com emoção a hoje estudante de Relações Internacionais.
Ela também não associava inicialmente Silvana como sua mãe, e destinava esse chamativo a qualquer um que demonstrasse cuidado e carinho por ela, “Foi quando eu realizei que eu tinha uma mãe, e o que era ter aquilo sabe? Porque antes, pra mim, qualquer pessoa que cuidava de mim era mãe”.
Apesar da história conter algumas turbulências em seu início, Camila relata a formação de sua família com um sorriso no rosto, claramente não guardando mágoa do processo traumático a que crianças no sistema de adoção são submetidas.
A psicóloga Alessandra Prattes esclarece como se dá o processo psicológico de uma criança adotada tardiamente. Apesar de ser doloroso para quem sempre esteve em um abrigo lidar com anos de rejeição, a adaptação pode ser relativamente fácil, relata a profissional. “A criança ou adolescente tem a necessidade de constituir uma família, de receber carinho e proteção, ela já está cansada da realidade do abrigo, portanto, apesar de ainda necessitar de um acompanhamento psicológico de perto, é um processo menos difícil”, conta ela.
Daniel do Valle e seu marido, que por questão de segurança preferiu omitir seu nome e dos filhos, adotaram dois irmãos, de seis e nove anos, e estão com eles há seis meses. Uma família que luta contra o preconceito e as adversidades diariamente, mas que diz levar todos os obstáculos com paciência e respeito.
O casal sempre pensou em ter filhos, e adotar sempre foi a primeira opção deles. Quando tomaram a decisão de entrar na fila, resolveram esperar por irmãos. Queriam crianças mais velhas, que já tivessem uma história, e a reação foi de pura felicidade quando receberam a notícia de que seriam pais de dois irmãos. O relacionamento já existente entre os meninos nunca foi um empecilho para Daniel e o companheiro, que disseram lidar com o assunto de forma tranquila. “Eles não falam muito sobre o passado, mas quando falam é para lembrar das coisas boas que viveram, ouvimos sempre com muita atenção e respeito, pois falam sobre a história deles, presto muita atenção, pois se um dia eles esquecerem destas histórias gostaria de contar para eles”, declara emocionado.
A adaptação dos meninos para um núcleo familiar fora dos padrões da sociedade foi baseada na curiosidade, segundo o pai Daniel. “Na instituição onde os meninos estavam já havia ocorrido outra adoção com um casal homossexual e durante o estágio de convivência todas as crianças e adolescentes da instituição conviveram um pouco com eles e sabiam dessa possibilidade”, conta ele. O apoio da psicóloga da instituição foi bastante relevante para esse processo, que já conversava com os meninos, e com as outras crianças do abrigo, sobre outros tipos de formações de famílias, ensinando primordialmente o respeito.
A psicóloga Alessandra ressalva o que a separação de irmãos pode acarretar para o desenvolvimento psicológico e emocional do jovem, uma vez que quando a criança cresce em um abrigo, normalmente já existe um sentimento de rejeição e abandono pela situação em que se encontra. A ponta de normalidade da vida daquele pequeno ser humano é o irmão, ou irmãos, que representam a parte da família que ainda está ao seu lado. Os danos que podem acarretar de uma separação entre esses membros de uma mesma família podem ter de ser acompanhados por uma equipe multifuncional, não necessitando apenas de um psicólogo, mas também de educadores, além da própria família que a adotou.
Baseado na falta de notoriedade que esse assunto tem hoje na mídia, o Tribunal de Justiça de São Paulo lançou no Dia das Crianças de 2017 a campanha “Adote um boa noite”, que está sendo veiculado até hoje nos transportes públicos, incentivando a adoção de crianças, adolescentes, grupos de irmãos e crianças com deficiência. Desde seu lançamento, as varas que participam da ação tiveram uma alta na procura de pessoas interessadas em adotar, um aumento considerável. Na Vara da Infância de Santo Amaro, do período de janeiro a outubro do ano passado, apenas duas adoções haviam sido iniciadas, e cinco pretendentes deram entrada no estágio de convivência. Do lançamento do “Adote um boa noite”, em outubro de 2017, até janeiro de 2018, ou seja, apenas quatro meses, a mesma vara recebeu mais 15 processos, entre avaliação de pretendentes e início de estágio de convivência, segundo o site do Conselho Nacional de Justiça.
Obviamente, o trajeto não é fácil para as crianças, mas também não é nada simples para os futuros papais. As complicações estão lá desde o início: conseguir informações sobre adoção se provou mais difícil do que o imaginado. Os dados online são raros e, muitas vezes, falhos.
Também há muita falta de comunicação dentro do sistema de adoção no Brasil. Durante a produção dessa reportagem, os números de telefone de Varas da Infância e da Juventude estavam fora do ar ou incorretos. Quando a ligação era completada e alguém atendia, éramos repassados para outro setor, ao menos duas vezes até cairmos no certo. Conselho tutelar, serviço social e o conselho nacional de justiça precisam de mais integração quanto aos dados, e quanto ao processo de adoção, pois isso só torna o sistema mais falho, lento e confuso, tanto para quem está checando os dados, quanto aos futuros adotantes e isso faz com que, infelizmente, o número de crianças esperando por um lar aumente, e o tempo de espera delas dentro do sistema, se perpetue.